A questão
do mundo em que vivemos é particularmente a questão do espaço urbano onde
efetivamente se produz e se reproduz, hoje, o conhecimento, em especial uma
forma muito peculiar de conhecimento que é aquele sobre nós mesmos, diretamente
aplicado na ação política, naquilo que é o viver presente e na conquista de
novos espaços absolutamente necessários para a sobrevivência.
A questão
da moradia, da casa, pode de fato representar, sob muitos aspectos, uma questão
focal fundamental. Na verdade, o mundo vive essencialmente uma crise aguda que
há muito se delineia: acredito que a história seja uma história de crises
permanentes porque o homem é, sem dúvida, uma invenção de si mesmo. É consenso
o fato de que a espécie humana caracteriza-se pela condição artística, um
conhecimento peculiar capaz de realizar prospecções sobre o futuro, anúncios de
projetos definitivamente marcantes para o nosso destino.
A casa é o
abrigo que acompanha o homem e tem sido por contradição, o lugar onde se
mostram, se exibem e se encontram, por meio da história e dos achados
arqueológicos, notícias sobre a essencialidade da vida; e, ao mesmo tempo, o
lugar da maior contradição entre o que é a coragem ou a aventura do homem e o
seu medo ou sua covardia. A origem da casa é o abrigo, o esconderijo, a gruta,
covil de um homem que sem dúvida esteve apavorado em algum momento da sua
existência.
Ora, o que
seria a casa hoje? A casa tem servido nos últimos tempos como instrumento
extremamente retrógrado das forças mais reacionárias contra a liberdade do
homem. A realidade concreta da nossa época, a rejeição da cidade, a ideia da
casa como realização que está fora da realidade da cidade, essa casa que
pretende a volta ao campo, que pretende idealizar o castelo senhorial, que nega
a liberdade do homem, que se liga à ideia de herança, fortuna, de lugar outra
vez, agora de forma anacrônica, de guarda de tesouro. Essa casa não é mais a
casa moderna. Hoje, o habitat do homem é a cidade.
A condição
de moradia distanciou-se há muito tempo do que poderia ser considerado, como
fato isolado, uma casa; ela é representada pela conquista histórica, pela
situação urbana. Essa situação em que as trocas se processam com velocidade
enorme, em que a afetividade se resolve e se explicita em dimensões jamais
esperadas, em que o espetáculo, os jornais, a televisão, a troca de
informações, a universidade, as providências em relação a nós mesmos, a
compreensão dos valores do trabalho e da política que se estabelece para o destino
que se deva dar à economia e as razões da classe trabalhadora se sobrepõem no
cenário cuja riqueza é por ela construída, esse lugar é cidade, a polis, o
lugar político, a tribuna da vida moderna.
A casa,
particularmente nos países atrasados e de passado colonial como o nosso, é uma
necessidade quantitativa, escandalosa, e não poderá ser pensada simplesmente
como uma unidade de habitação. Para suprir essa necessidade nós teremos que
inventar, aceitar, reconhecer a casa realmente contemporânea que conte fundamentalmente
com os recursos da grande cidade. A sua arquitetura, a sua forma, será
nitidamente associada com o que se reconhece como o desenho da cidade,
associada às circunstâncias que alimentam perspectivas em relação à prole; uma
casa que compreenda e subentenda a existência de escolas, parques, transporte
público, de felicidade enfim, esta quimera capaz de apaziguar e recompor uma
história amarga, na qual contingentes enormes da população são estigmatizados,
desprezados, relegados à miséria.
Paulo Mendes da Rocha,
São Paulo, 13 de Setembro de 1986.
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